Parte da imprensa chinesa ignorou de maneira ostensiva determinação dos censores de Pequim e decidiu publicar com destaque reportagens independentes sobre o acidente de trens rápidos que matou 40 pessoas no dia 23 de julho e gerou a maior onda de críticas ao governo já registrada na internet.
A ordem do Departamento de Propaganda chegou aos veículos de comunicação na sexta-feira à noite, quando muitos deles fechavam cadernos especiais sobre o assunto para sábado e domingo. Os editores deveriam reduzir o espaço dedicado ao tema, publicar apenas textos positivos, utilizar informações da agência oficial Xinhua e não veicular fotos do acidente.
O semanário Economic Observer desobedeceu à determinação e trouxe no dia seguinte oito páginas sobre o acidente, com o título “Sem milagre em Wenzhou”, uma referência à declaração do porta-voz do Ministério das Ferrovias, Wang Yongping, de que o resgate de uma menina de dois anos 21 horas depois do choque entre os trens havia sido um “milagre”. Entre os títulos trazidos pela publicação estava “Quem é o assassino?”. Milhões de comentários deixados na internet sustentam que as operações de resgate foram mal conduzidas e suspensas precocemente. Fundado em 2001, o Economic Observer é independente (sem vínculo com órgãos oficiais) e tem a reputação de realizar uma das melhores coberturas de temas econômicos e financeiros da China.
Outro veículo que ignorou as ordens dos censores foi o Diário Metropolitano do Sul (Nangfang Du Shi), que apesar de ser ligado ao Partido Comunista costuma trazer reportagens investigativas. No domingo, o jornal usou um palavrão para se referir ao “milagre” mencionado pelo porta-voz do Ministério das Ferrovias, cuja reputação já era baixa junto ao público chinês e foi destruída pela maneira com que reagiu ao acidente. A maioria dos veículos cumpriu a determinação dos censores, mas alguns jornalistas manifestaram sua frustração e relataram na internet as ordens recebidas do governo, que são tratadas pelas autoridades como segredos de Estado. Enquanto muitos optaram pelo anonimato, o editor de fotografia do jornal Notícias de Pequim descreveu a atuação do Departamento de Propaganda em um post no Weibo (microblog), o equivalente chinês do Twitter, bloqueado no país.
Segundo Chen Jie, a primeira orientação foi dada por telefone às 21h de sexta-feira: a imprensa deveria “esfriar” a cobertura do desastre e evitar análise, comentários, reportagens ou links na internet para os textos. Só declarações oficiais “positivas” deveriam ser veiculadas. Outra ligação foi recebida às 22h: “Nenhuma notícia sobre o acidente, não importa se positiva ou negativa”. A orientação final veio por volta da meia-noite: “Vocês podem usar apenas palavras da agência Xinhua e nenhuma foto deve ser utilizada. As reportagens não podem ser publicadas com destaque. Ele nos ordenaram a fazer o que diziam sem questionamento. Nós cancelamos a edição de nove páginas”, disse Chen em seu post. No sábado, o Notícias de Pequim publicou um texto sobre a previsão do tempo em sua primeira página, onde estaria o texto sobre o acidente, em uma decisão que lembra a adotada pelo Estado e o Jornal da Tarde quando estava em vigor a censura prévia no Brasil (1968-1975) _poemas de Camões e receitas de bolos eram publicados no lugar de reportagens vetadas.
A Associação de Jornalistas de Hong Kong divulgou nota no sábado na qual criticou a determinação do Departamento de Propaganda e demandou que ela seja cancelada. “Nós precisamos aprender com esse terrível desastre para prevenir a sua repetição”, ressaltou a entidade. Mesmo monitorados pelas autoridades de Pequim, os microblogs se transformaram em um catalisador do descontentamento da população em relação à falta de transparência com qual o governo reagiu ao acidente, que ocorreu quando um trem ficou sem energia e foi atingido por outro que trafegava na mesma linha.
Nos nove dias que se seguiram ao choque, os microblogs do portais Sina e QQ receberam, respectivamente, 10 milhões e 20 milhões de comentários sobre o assunto. Ontem, o jornal oficial China Daily, editado em inglês pelo Conselho de Estado, trouxe uma reportagem positiva sobre o Weibo, dizendo que a ferramenta é uma plataforma para o desenvolvimento de uma “cidadania madura, a qual é um pré-requisito para a China avançar na direção de uma sociedade civil”. Zhang Jiang, professor de Comunicação e Jornalismo Internacional da Universidade de Estudos Internacionais de Pequim, classifica o movimento de uma “revolução”, mas ressalta que ela não tem uma natureza política. Apesar disso, ele ressalta que será um enorme desafio para o governo se equilibrar entre essa nova forma de participação e a censura. “Eu diria que é uma das maiores dores de cabeça para as autoridades.”